sexta-feira, 18 de novembro de 2011

MORMAÇO

Nâo precisei abrir os olhos para saber que estava ali. Fazia anos que não voltava ao sítio, já não me lembrava exatamente quando, mas sabia as circunstâncias do dia que parti. Calculei o tempo que havia se passado pelo jornal de seis anos atrás aberto na mesa do café, naquele dia fatídico. Mas tudo, tudo era tão intacto como se o tempo não tivesse passado. E sabia que estava ali, não só eu, mas eu também.
A casa do sítio era bem ventilada, mas as janelas fechadas há anos davam um ar morno aos aposentos. Enquanto a luz do sol adentrava pelas frestas da veneziana, fazia um calor morno, um calor de presença. Havia café, arroz e feijão nos armários, um chinelo descalço com barro na sola esquecido na varanda, e a camisola de Tereza já amarelada do tempo em cima da cama. Fechava os olhos na cadeira de balanço e a vinham lembranças do nosso tempo ali, juntos.
A tarde no sítio demorou a passar, cada embalo na cadeira de balanço durava em média 30 segundos, e cada um desses embalos trazia uma lembrança nova a minha mente e, a cada lembrança, chorava. Não secava as lágrimas porque a presença morna fazia com que elas evaporassem.
O sol já havia se posto, mas a presença morna permanecia. Embora tudo permanecesse intacto nesses passados seis anos, o sítio já não era o mesmo: os animais haviam sido vendidos, o pó tomara conta do que restara.
O pó tomara conta dos aposentos e das lembranças. Quando começou a anoitecer, fui para o quarto que era de nós dois. Já não havia mais sol, também não acendi velas nem lampião, mas aquele mormaço de sesta continuava invadindo as minhas entranhas e me fazendo suar, como se estivesse entre as paredes da casa.
Por causa da ausência de luz, adormeci. Não precisei abrir os olhos para saber que estava ali, que a presença quente nos lençóis e colchões era Tereza, mas, ainda assim, queria crer que tudo não passava de um sonho.
Quando acordei o calor já havia ido embora, os primeiros raios da manhã invadiam o quarto junto com um vento fresco. Olhei para o criado mudo do lado da cama e li num papel pequeno: que bom que você veio. Depois vi marcas de dedinhos pequenos na poeiria acumulada, e enfim soube que era você que estava aqui. Pensei e calei sorrindo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TOCAVA UMA VALSA LENTA

Conheci Stefan e Josephine nos bailes de gala. Desconheço, até hoje um par tão leve na dança e tão completo na alma. Eram dois, mas ao mesmo tempo eram um. Causavam inveja aos outros pares, tanto pela beleza dela, quanto por como Stefan sabia carregar uma dama na dança. Seu porte de homem dos negócios dava credibilidade a suas passadas, ao seu passo compassado. Nas competições, desbancavam qualquer outro competidor e, quanto mais dançavam, mais se conheciam nos passos e na vida.
Josephine era sempre estrela. Bailava como a flor de leão ao vento, quanto a assopramos. Bastava que a música soasse que valsava como ninguém. Possuía a juventude que faltava a Stefan, percebida pelos dezoito anos de diferença entre os dois. Mas, apesar da diferença de idade, se completavam. Stefan era muito mais sério que Josephine, enquanto ela fazia os passos de dança sorrindo, ele a carregava como se cumprisse uma obrigação. Apesar disso, ele gostava do que fazia, mas gostava mais ainda de fazê-lo ao lado da amada. Josephine era para ele um esplendor a ser exibido como titulo máximo de suas conquistas.
Não abandonava o ar sisudo do rosto por trás do nariz grande e dos olhos azuis enquanto dançava, e Josephine achava tanta graça disso que, às vezes, fazia gracejos que deixavam Stefan desajeitado. Ela era ainda muito menina e ele um inglês renomado no mercado de importação de tecidos. A dança era alimento do lado virtuoso Stefan, mas era o que mantinha a vivacidade de Josephine.
Josephine era uma moça doce no auge dos seus dezoito anos, por vezes sua volúpia encontrava uma brecha entre seu lado menina e seu corpo de mulher. Na dança clássica via uma forma de extravasar seu eu feminino tão aprisionado; no casamento com Stefan viu uma escapatória ao desejo de sua mãe em pô-la no convento. Stefan podia dar a boa vida que Josephine sequer sonhara para si: os bons vestidos, as boas óperas, os bons vinhos, viagens de navio e jóias. Eu os admirava ao longe e, por muitas vezes, quis estar no lugar de Stefan, mas, jamais, chegaria a sua altura na dança. Jamais teria o porte de conduzir uma mulher de tamanha grandeza.
Gostava somente de admirá-los, no início. Acompanha os festivais de dança da cidade, fazia minhas apostas no casal, por vezes flertava Josephine que, de forma cruel, poucas vezes retribuiu as minhas olhadelas indecentes. Ela amava Stefan, era o que eu pensava, depois percebia que não deveria ser amor: a relação entre os dois era mais uma forma bonita de gratidão. Josephine era grata a Stefan por tudo que era, por tudo que possuía. E, talvez, mesmo sem amá-lo era fiel. Sua fidelidade aguçava ainda mais meus desejos dissimulados. Imaginava-a nua, pensava em invadir os camarins dos salões de dança para sentir seu corpo cálido. Pensava que Stefan não merecia uma mulher tão decente e ao mesmo tempo tão bela. Minha obsessão cresceu de tal modo que já não podia mais deixar de pensar em possuí-la. Minha admiração se tornou tão doentia que, por vezes, acabava pensando em um plano para invadir seu dormitório e raptá-la. De qualquer forma, Josephine teria que ser minha. Ou seria de ninguém.
Com o passar dos dias minha vontade de tê-la era cada vez maior, já não controlava meus instintos. Entretanto precisava parecer controlado frente a Josephine, pois minhas tentativas de aproximação eram cada vez mais freqüentes, embora sem sucesso. Quando soube que Josephine e Stefan haviam sido convidados para fazerem, juntos, uma viagem pela Europa, enlouqueci. Com as economias que tinha tratei de comprar passagens no mesmo navio que os dois e de reservar uma suíte no mesmo hotel em que eles se hospedariam. Josephine tinha seu preço e eu estava disposto a arcar com o que fosse preciso. Contava os dias para que o embarque chegasse, seria uma forma de nos aproximarmos e para isso já havia pensado em convites para passeios pelo convés enquanto Stefan se distraía conversando sobre negócios com investidores.
As semanas se passaram e o dia do embarque chegou: fazia um dia azul e Josephine vestia amarelo. Instalei-me nos meus aposentos e tratei de conhecer logo a distância que nos separava. Imaginei nós nos cruzando pelos corredores: eu seria gentil, pois era preciso ganhar sua confiança, antes de tudo. Todas as noites, quando deitava imaginava seu corpo roçando no de Stefan e tinha nojo desta realidade tão latente. Na verdade, Josephine sempre dormia sozinha, enquanto Stefan apostava grandes quantias na mesa de poker, mas disso, eu somente soube depois. Pouco vi Josephine nos nossos dias a bordo, ela apenas saía de sua cabine para tomar o sol da manhã. Pouco antes de atracarmos soube que seu desaparecimento se deu devido a uma indisposição. Pensei que seus dias de doença a sós sem Stefan teriam sido a oportunidade perfeita para tomá-la, mas tive pena da pobre moça: não era certo usufruir de sua fraqueza. Nos nossos dias distantes, escrevi muitas cartas em que dissimulava sobre os momentos a dois que sonhara para nós.
Ao desembarcar do navio, Josephine foi a um médico; eu fui ao nosso hotel. Na nossa primeira noite em terra firme, foi servido um banquete para a tripulação que se hospedara ali. No meio do banquete, se ouviu um tilintar de talheres na taça de cristal: era Stefan. Ele agradeceu a todos, fez as honras à casa e anunciou aquilo que meus ouvidos não estavam preparados para ouvir: Josephine e ele teriam um filho.
Se, já me era custoso dividi-la com um homem só, imagine com uma criança? Uma criança crescendo em seu ventre perfeito. Eu não podia admitir um fruto do amor de Stefan por Josephine. Josephine teria que abnegar a dança, abrir mão do que mais lhe satisfazia pela maternidade. Pensei que poderia livrá-la deste fardo.
Precisava pensar rápido num plano infalível para tê-la, pois, com o passar do tempo, a maternidade tornaria meu desejo inviável. Bebi mais uma taça de vinho e tratei de ir para meu quarto. Naquele momento já não conseguia mais discernir em que ponto minha singela admiração por uma mulher havia se transformado numa tirania carnal. Subi os andares de escada fingindo que bailava com um ser invisível, os mensageiros do hotel supostamente pensaram que meu devaneio era fruto de uns goles a mais, e pouco me importava o que pensassem. Cheguei a porta do meu quarto e decidi voltar para onde jamais deveria ter ido. Esperei no corredor Josephine se dirigir aos seus aposentos, a porta entreaberta e a média-luz significavam que Stefan chegaria em breve. Aproveitei sua distração e me escondi na ante-sala da suíte. No salão de festas, tocava uma valsa lenta.
Antes de Stefan chegar, tratei de realizar meu feito. Se Josephine não poderia ser minha, que não fosse mais de ninguém. Os hóspedes do andar ouviram o disparo. “Adeus Josephine, perdi você, estou perdido”, foram minhas últimas palavras para ela. Stefan entrou correndo no quarto como se premeditasse o irremediável. Ouviu-se mais um disparo, e quando os homens chegaram só havia um corpo abraçado num corpo de mulher nu.
Eu observei a cena de sangue ao longe. Foi-se Josephine, foi-se Stefan. De meu segredo, poucos desconfiam. Passado tanto tempo, agora já me permito dormir em paz.