sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MARINA E O MAR

Seus sonhos eram grandes demais para as mentes pequenas, era o que vovó dizia. Da primeira vez que viu o mar, chorou. Da segunda vez que viu o mar, deixou ser lágrima pra virar oceano. Somente vovó a compreenderia.
Marina havia nascido sem nome num início de outono dourado. Foi sua avó quem, horas antes do batizado, sugeriu que aquele bebê doce se chamasse Marina. Sua família, sem muita prática com bebês e sem muita sensibilidade pras coisas simples da vida, deixou assim; mas sua avó sabia do quanto o mar guiaria sua vida dali em diante e sabia do quanto os sonhos daquela criança seriam maiores do que ela mesma, transbordariam em sua existência.
Marina morava no cerrado, conhecia o mar apenas pela televisão e pelas histórias que ouvia contar quando era criança. Era sua avó que falava sobre as coisas bonitas do mundo e, principalmente, sobre o mar. Quando ela faleceu, Marina disse pra si mesma que iria em busca daquilo que tanto imaginara nas histórias infantis: as águas cristalinas, a areia branquinha.
Durante dezessete anos nutriu no seu inconsciente as tantas lendas que sua avó contava; entre sereias, marujos e conchinhas valiosas construiu em sua mente aquilo que não conhecia visivelmente. Mas conhecia o mar porque o carregava em sem nome. E, a cada dia que se passava Marina achava mais absurdo levar o mar no nome sem conhecê-lo. Marina, aquela que veio do mar, só tomava banho de cachoeira. O mar, entretanto, era tão presente em sua vida que, todos os dias, se fazia presente em seus sonhos.
Além dos livros de história, imaginava sua própria história, lembrava dos tempos da infância em que queria ser uma sereia, mas depois de crescida se sentia injusta para ser – embora tivesse os cabelos dourados e cacheados e a pele doce de uma. A injustiça não era para si, mas se sentia injusta com o mar. Ela levava o mar em seu nome, mas era o mar quem a levava. Achava tão injusta essa dependência de algo que não conhecia que, um dia, ao acordar de madrugada ouvindo os grilos contentes na escuridão da rua pensou em quitar sua dívida com as águas.
Não sabia a distância de Luiziânia, no interior de Goiás, até o litoral, muito menos quanto custaria sua empreitada. Contudo, sabia no quanto seu desejo crescia a cada dia. Deixou o dia raiar para pensar melhor, não pensou. No fim de tarde já havia ficado sabendo de um senhor ranzinza que iria a São Paulo resolver problemas de saúde com sua esposa. Marina vendeu seu violão, juntou suas economias, contou suas moedas e saiu de casa com uma mala pequena e os sonhos grandes na mente. Sua tia disse que “aquela velha maldita enfeitiçou a menina com essa história de mistérios do mar”, sua mãe se calava e rezava para Santa Rita junto com uma vela acesa na mão, seu pai vinha do trabalho na pequena plantação da família segurando a enxada e pensando na desgraça do seu nome na vizinhança, alguns vizinhos jamais voltariam a comprar suas hortaliças com medo do feitiço, isso era o que temia. Mal sabiam que o mar havia enfeitiçado Marina no seu nascimento, por chamar-se assim. Marina partiu na madrugada do dia seguinte, deixou um bilhete na mesa dizendo “mãe, não me espera que eu volto tarde” como se isso fosse uma atividade normal que fazia pela cidadezinha, porque pra ela, era a sua missão.
Nos muitos quilômetros que se seguiram num fusca azul bebê, Marina sequer pregou o olho. Pensava em coisas como “e se perdesse o mar?”, tanto esforço, tanta espera teria que valer a pena e por isso sacrificou-se. Os velhos não disseram uma palavra durante toda a viagem, Marina, no banco de trás, tentava imaginar seus pensamentos, mas ver a pobre senhorinha de cabelos prateados febril por horas e horas a deixava triste. Na sua tristeza, lembrava do violão vendido por uns trocados e na imagem de sua mãe rezando para Santa Rita; quando a tristeza passava, voltava a lembrar das histórias de sua avó e a angústia tomava conta dos seus pensamentos. De tanto pensar, dormiu. Pela primeira vez em muitos anos, não sonhou com o mar, sonhou com um deserto, estava no meio dele e sentia a areia ventando no seu rosto. Quando acordou, olhou pela janela embaçada e viu que já era dia, cortando o silêncio de horas e horas o velhinho ranzinza parou o carro e disse “filha, isso é o mais perto que posso te deixar do mar”. Marina não pensou duas vezes, juntou sua mala pequena, e em questão de segundos se via do lado de fora do fusca azul agradecendo pelos quilômetros rodados e desejando saúde para a velha senhora. Marina sabia que dali em diante teria que andar, e andou, andou até o mar.
Avistou o mar já cansada, os pés doíam, o sol ardia na pele branquinha, mas ainda sentia forças para correr. Viu a areia branca, imensa, e se sentiu completa. Fazia calor, e era calor o pretexto para entrar mar adentro. Marina primeiro chorou, depois sentiu a areia molhada nos pés, deixando-os afundarem. Depois, a cada onda que via chorava pulando cada uma delas com a roupa do corpo, deixando, aos poucos, os cachinhos dourados molharem as pontas. Quando percebeu, já não havia separação entre ela e o mar: eram um corpo só. Marina, aquela que veio do mar, voltou para onde jamais devia ter saído. Marina virou um dos mitos que sua avó contava, deixando de ser lágrima para ser oceano.